Movimento dos Sem Teto de Salvador: A luta dos Sem teto soteropolitanos.
Raphael Fontes Cloux[1]
Resumo
Este artigo tem por objetivo problematizar questões referentes ao Movimento dos Sem Teto de Salvador - MSTS, verificando se é possível, dentro das definições marxistas, caracteriza-lo enquanto um movimento contra-hegemônico ao sistema capitalista. Apresentaremos brevemente quem são os sem tetos do MSTS e sua trajetória, e explanaremos sobre alguns conceitos marxistas contemporâneos, como hegemonia, contra-hegemonia, bloco histórico, Guerra de Posição, Real e de Subterrâneo.
Palavras-chave: Sem Teto; Contra-hegemonia; Movimento Social; Luta pela Moradia.
1 O Movimento dos Sem Teto de Salvador
1.1 Quem são a/o(s) Sem Tetos e pelo que lutam
Tendo como principal embrião o Movimento dos Sem Teto de Salvador, fundado em julho de 2003, o MSTB (Movimento dos Sem Teto da Bahia) traz uma composição social que herda histórias de alegrias, dores e ações de coragem dos segmentos populares brasileiros e baianos desde as primeiras invasões portuguesas há mais de 500 anos. A existência, no MSTB, de brancos pobres e de descendentes de homens e mulheres “batizados” a ferro e fogo como “indígenas” se entrelaça com cores, traços e gestos de uma fortíssima presença de negras e negros, formando um conjunto simbólico que desde o período colonial tentou realizar sonhos de justiça e igualdade social. (Documento Quem Somos em anexos)
O Documento Quem Somos, (ver anexos), aprovado pelo I Congresso do Movimento dos Sem Teto de Salvador ou Movimento dos Sem Teto da Bahia (de acordo com seu regimento, pois estadualizou sua ação no I Congresso realizado em 2004) propõe uma revisão da herança histórico-cultural dos sem teto de Salvador.
Os Sem Tetos são oriundos do processo histórico de exclusão de grande parte da população, dos negros e negra, das comunidades indígenas, dos caboclos do meio rural que foram expulsos juntos com os negros após o 13 de maio de 1888, sem qualquer direito sobre as terras em que cultivavam e criavam gado ou a qualquer assistência social ou de previdência, sem acesso à alimentação adequada, trabalho e moradia.
Como pode ter existido uma democracia racial no país se a maioria dos que estão dentro das ocupações dos sem teto são afro-brasileiros, como se pode perceber em pesquisa realizada em 2007? Os sem teto lutam para recuperar o que lhes foi tirado, como se percebe no depoimento abaixo:
Em Salvador tem muitas terras paradas que são desocupadas. Então a gente passando a tomar posse dessas terras não somos invasores. Que na verdade a invasão foi a ‘descoberta’ do Brasil. Isso sim foi a invasão. Nós crescemos aqui, vivemos aqui, temos por direito de moradia, alimentação e trabalho. (Ocupante da Vila Via Metrô in PRONZATO, 2004.)
Além, de serem majoritariamente afro-brasileiros, são majoritariamente mulheres, mães solteiras que além de lutarem contra uma exploração histórica, a opressão étnica, a diferenciação e subjugação sexual desde antes da formação do Estado, como sugere ENGELS (2002).
O Brasil foi um dos primeiros países a incorporar o voto feminino, na década de 1930, mas a efetivação de políticas para as mulheres encontra-se distante de serem realmente incorporadas pelo Estado brasileiro. Até recentemente é que foi finalmente revogada, apesar de já se encontrar em desuso, a lei que descriminalizava o assassinato da esposa pelo marido caso fosse “crime” de adultério. A tradição histórica no Brasil era a formação religiosa e moral da Igreja Católica, que naturalizava a opressão da mulher no Brasil:
As mulheres estejam sujeitas aos seus maridos como ao Senhor, porque o homem é a cabeça da mulher, como Cristo é a cabeça da Igreja ... Como a Igreja está sujeita a Cristo, estejam as mulheres em tudo sujeitas a seus maridos. (Epístola aos Efésios apud PRIORE, 2004)
A mulher enquanto ser “naturalmente” sujeito à opressão de seus maridos revela um fato de reviravolta na vida das mulheres sem teto. As mesmas rompem com esta tradição, recriam suas histórias de vida e, ao mesmo tempo, a história das mulheres enquanto sujeitos políticos, sociais, econômicos e culturais. “A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de poder, pelos agentes envolvidos na trama das relações sociais.” (SAFFIOTI, 2004).
A ruptura de que estamos tratando, pode ser percebida a partir da música abaixo, de autoria da coordenadora Luciana Moura, que afirmou que além de ser uma narrativa de sua própria história, ao mesmo tempo é um contar a história das guerreiras sem teto:
Eu me encontrava muito triste amargurada
Quase um mês dentro de casa não via quase ninguém
A depressão os meus dias consumia
Subtraiu minha alegria
Eu era apenas alguém que
Precisava de uma palavra, de um consolo
Mas ninguém compreendia porque estava a sofrer
Pois não queriam que uma pessoa inteligente
Muito doce boa gente
Desistiu de viver
Não suportava aquela vida de amargura
Onde nada acontecia pra alegrar meu coração
Eu precisava semear alguma coisa
Pois quem planta sempre colhe
Nunca sofre humilhação
Não desisti levantei minha cabeça
Ao Deus vivo fiz uma prece
Que veio então me socorrer
Numa manhã de domingo muito quente
Trouxe pra mim alegria
Nova chance de viver
Fui à luta pra ajudar minha gente
Pobre e muito carente
Vítima da opressão
Eu precisava de uma forma inteligente
Decidida e eloqüente e
Transformar meu coração
Foi aqui nesse grande movimento
Onde a chuva e o mau tempo nada pôde sufocar
Aquele grito que estava engasgado,
se perdeu, ficou de lado
Dele eu não quero lembrar.
(Luciana Moura, 2007)
O sentimento de empoderamento[2] feminino e em contrariedade à permanência da exploração pelo homem no âmbito familiar também fica refletido na fala de Carla, integrante do MSTS:
Tem muitas mulheres que tem vergonha de ser sem teto Mas muitas são separadas e não tem condições de ter um teto. Mas eu digo: eu tenho orgulho de participar do movimento. Porque eu quero ter meu teto e não depender de homem. E é isso que todas as mulheres deveriam pensar. (Carla in PRONZATO, 2004)
A(o)s sem teto atuais são considerada(o)s toda(o)s aqueles que não possuem qualquer moradia para si ou sua família, “Os que moram de favor, embaixo de pontes, que ganham muito pouco e sacrificam sua qualidade de vida pagando aluguel e que moram em áreas de risco.” (Pedro Cardoso in PRONZATO, 2004) O cálculo estimado pelo movimento é que o déficit habitacional em Salvador esteja beirando os cento e cinqüenta mil. Entretanto, a luta pela habitação, apesar de ser o principal mote do movimento, não se constitui enquanto um fim em si próprio. Como podemos ver abaixo:
O MSTB – Movimento dos Sem Teto da Bahia – é um movimento de caráter estadual, fundado no “I Congresso do Movimento dos Sem Teto de Salvador”, e tem como objetivo a organização e defesa daqueles que enfrentam a problemática da falta de MORADIA em nosso estado.
O MSTB entende que outras necessidades, tais como Saúde, Educação, Lazer, Segurança, Creche, Meio Ambiente, Emprego, etc, fazem parte da LUTA por MORADIA e Reforma Urbana que atenda os interesses dos setores excluídos da sociedade.
O MSTB entende que a ocupação de prédios e terrenos abandonados se legitima quando o Estado nega o direito à moradia a milhões de famílias, contribuindo para a degradação da qualidade de vida.
O MSTB é um movimento autônomo, independente do Estado, partidos políticos e outras instituições, podendo se relacionar com estas quando necessário, sem que isto implique na perda de sua autonomia. (Regimento Interno do Movimento do Sem Teto da Bahia/Salvador)
Tem a perspectiva da luta por outros equipamentos e direitos públicos, como creches, transporte público. Além do objetivo da construção das Comunidades do Bem Viver. Que inspiradas no que foi a Comunidade de Canudos tentam reaplicar aquela experiência em outro contexto histórico, mas com os mesmo valores construídos por Antonio Conselheiro e Pajeú.
A estratégia central do MSTS é a construção das Comunidades do Bem Viver. Comunidades que mesmo dentro dos limites do capitalismo construam uma contra-hegemonia no sentido de valores e ações que apontem para uma ruptura e construção de um projeto socialista. Então o objetivo é o resgate histórico-cultural de iniciativas socialistas e de construção de comunidades que se contraponham ao sistema capitalista.
O fomento de valores como o ecumenismo, o cooperativismo, o associativismo e a vivência coletiva são elementos norteadores de nossa ação. (Pedro Cardoso em Entrevista ao Autor, 2007)
Nossa luta é ideológica, temos que romper com o paradigma capitalista. Que é podre e nojento. Não temos futuro se continuar do jeito que ta aí. (TAI – Vivaldo Santos Neto – em Entrevista ao Autor, 2007).
Com o depoimento de Tai (Vivaldo Santos Neto), podemos perceber também o empoderamento desses setores que historicamente foram excluídos da sociedade, além de sua história recente, de sua formação, intimamente ligada ao processo de construção do neoliberalismo:
(...) Quantas famílias não se desestruturaram por causa desse sistema maléfico. Vi tios morrerem de alcoolismo e primos morrer de tiro. Hoje eu sei explicar o crime no Rio de Janeiro, que é reflexo desse sistema. Como você vai defender que tem que matar, que tem que prender. Prender? Nesse país fudido! (...)
Eu sofri a política neoliberal. Meu pai era da USIBA [atual GERDAU] e foi demitido. Hoje eu entendo o que passei, os conflitos. Hoje eu tenho um respeito a mais deles e por eles. (...)
Não basta dizer que é drogado, biriteiro. Temos que dar o braço. Como queremos uma sociedade melhor se não organizar a massa de excluídos?! (...)
O movimento tem me melhorado muito. Me separei, fiquei desempregado. Aí conheci a pedra – e essa droga está consumindo nossos jovens. Eu tava meio perdido aí fui encontrado.
Hoje se me disserem pra sair do movimento é como tirar um pedaço. Nesses dois anos de MSTS me valeram mais que 30 anos. (TAI – Vivaldo Santos Neto – em Entrevista ao Autor, 2007)
1.2- Breve Trajetória do MSTS
O movimento dos Sem Teto de Salvador foi fundado no ano de 2003 a partir de assembléias realizadas no bairro de Mussurunga. Teve como primeira ação, no dia dois de julho do mesmo ano a ocupação de um terreno abandonado na região da Estrada Velha do Aeroporto – EVA. O local conhecido como Loteamento de São Pedro era utilizado por criminosos para praticar assaltos e estupros, de acordo com a declaração da senhora Maria das Graças Gesteira ao Jornal A Tarde daquele ano. Afirmou ainda que o primeiro grupo que chegou foi composto por trezentas famílias.
Após aquela ocupação o MSTS passou a perceber a necessidade de ampliar sua visibilidade para que pudesse se constituir enquanto movimento de destaque. De acordo com matéria do Jornal Correio da Bahia de 02 de abril de 2004, os dados do Censo de 2000 revelaram que mais de 16 milhões de pessoas no Brasil moravam de favor, ao passo que mais de 21 milhões moravam de aluguel; e em Salvador mais de 111 mil moravam em aluguéis.
A partir daí o movimento passou a organizar uma série de ocupações em terrenos e prédios públicos ou particulares desabitados. Antigos prédios, casarões e fábricas do centro da cidade, da cidade baixa e demais regiões; chegando a ocupar inclusive um clube na orla do bairro da Pituba. De acordo com o jornal Tribuna da Bahia do dia 29 de março de 2004, eram catorze ocupações, já em 07 de maio do mesmo ano, o mesmo jornal já registrava vinte e uma ocupações, nos bairros da Pituba, Cidade Baixa, Campinas de Brotas, Soledade, Periperi, Costa Azul, Mares, Água de Meninos, Comércio, Estrada Velha do Aeroporto, Bom Juá, Lobato, Pirajá, Valéria e, em outros dois municípios, Lauro de Freitas e Conceição de Feira.
Durante quase quatro anos de existência do Movimento dos Sem Teto de Salvador foram cinqüenta e nove ocupações realizadas, e conseguimos coletar dos jornais de circulação na cidade cerca de cento e oitenta matérias de jornais noticiando especificamente o MSTS. O que demonstra certo impacto causado pelo movimento em seu curto período de existência, que no ano passado inclusive lançou um candidato a deputado estadual pelo Partido Socialismo e Liberdade.
2 Conflitos na Cidade: o MSTS escreve novos capítulos na Luta de Classe Soteropolitana
2.1 Hegemonia e Contra-hegemonia
As análises marxistas não se estagnaram ao longo do tempo, ao contrário, o princípio materialista dialético estimulou diversos teóricos na ampliação dos conceitos e teorias desta corrente de pensamento. Dentre eles, encontra-se Antonio Gramsci, membro do Partido Comunista Italiano, que foi preso durante o regime fascista de Mussolini. Na prisão permaneceu praticamente até sua morte, porém lá produziu obras, que, mais tarde, inaugurariam um novo momento do marxismo contemporâneo.
Destas contribuições utilizaremos aqui os conceitos de hegemonia e contra-hegemonia, não para tangenciar a perspectiva da luta de classes, mas sim para melhor compreendê-la. Karl Marx (1998) no Manifesto Comunista trabalha com o conceito de dominação e exploração para explicar os fenômenos sociais que analisou. Não discutiremos aqui a exploração, pois a mesma permanece, e é o que motiva a burguesia a querer manter seu poder. Porém, o conceito de dominação tornou-se impreciso diante a complexificação da sociedade capitalista.
Ao utilizar-se o conceito de dominação, entende-se que a classe que está no poder permanecerá lá a partir da utilização da força coercitiva do aparelho estatal (seja polícia ou exército), para poder subjugar os explorados e controlá-los.
Porém, para a exploração realizar-se, as classes no poder (tanto das estruturas econômicas, quanto do Estado e da Sociedade Civil), conseguem construir mecanismos onde nem sempre a coerção é necessária. Para o conhecimento dos explorados da necessidade da concessão de seu próprio domínio, cria-se, dentre outros mecanismos, a ausência de empregos. Quem gostaria (ou gosta) de estar desempregado? De fazer parte do exército de reserva? Provavelmente ninguém. Logo, percebe-se que além dos empregados, há um contingente significativo implorando para ser explorado. E se sujeitando a qualquer situação pelo emprego.
Ao abrir mão de qualquer situação pelo emprego, e querer estar (pois o ser está cada vez mais difícil) empregado, significa que há uma passividade e aceitação do processo de exploração. Não é dominação stricto sensu, pois não há, necessariamente, uma coerção militar obrigando quem quer que seja àquela sujeição. E o que há, então? Um convencimento da legitimidade daquele processo pela classe não hegemônica, ou seja, há uma aceitação. E é justamente neste ponto que Gramsci formula o conceito de hegemonia.
Hegemonia para Gramsci, não seria somente a dominação, mas, também, não viveria sem a mesma. Assim, seria a fusão entre dominação e direção. Dominação em virtude da utilização do arcabouço repressor, e em particular o do Estado, entendendo além da polícia e exército, as leis, e direção pela liderança, pelo convencimento (em qualquer esfera) da legitimidade daquele processo.
... a hegemonia é uma combinação de liderança (ou direção moral, política e intelectual) com dominação. É exercida através do consentimento e da força, da imposição e da concessão, de e entre classes e blocos de classes e frações de classe. Esta pode se dar de forma ativa, como vontade coletiva, ou se manifestar de forma passiva, através de um apoio disperso ao grupo dirigente/dominante. (ALMEIDA, 2003.p.2)
A hegemonia se dá a partir do momento em que o grupo hegemônico (dominante/dirigente) consegue conquistar o Bloco Histórico. O bloco histórico é o bloco de poder, entendido de forma plena, porém não monolítica nem onipresente (totalizante). Para uma classe social ser hegemônica, para Gramsci, ela deverá, obrigatoriamente, exercer hegemonia em todas as esferas do bloco.
Segundo ALMEIDA (2003) haveria quatro esferas componentes do bloco histórico, sendo elas: a economia, onde se encontra o setor produtivo e motor da sociedade capitalista/hegemônica; a sociedade civil, onde estão todas as organizações não partidárias, como sindicatos (de trabalhadores e patronais), organizações não governamentais, clube de mães, clube de xadrez; o Estado, entendendo aí todas as esferas governamentais, e o Estado Ampliado, incluindo o conjunto de leis; e, a mídia, que apesar de Gramsci trabalhar com o conceito de imprensa, ALMEIDA (2003) verifica a complexificação deste setor e sua influência na estrutura de poder.
Cada esfera deste bloco estabelece uma relação de determinância dialética com a outra. E para que uma classe (ou fração de classe) consiga exercer hegemonia sobre as demais, tem que conquistar todas as quatro esferas. Esse movimento dá-se, do ponto de vista da conquista da legitimação da hegemonia (direção), com a construção de uma cultura hegemônica. Essa cultura não é só uma ideologia, pensamentos organizados conscientes de uma visão de mundo, mas um conjunto de pensamentos e práticas sociais, organizados e desorganizados, sistematizados ou não, que legitimam o grupo hegemônico (WILIANS, 1999).
Esta articulação de elementos culturais também é feita utilizando-se da tradição seletiva (WILIANS, 1999), dos elementos culturais residuais. Utilizados para, como algo largamente feito no Brasil, construir e contar a história a partir da classe hegemônica. Um exemplo marcante foi a construção dos Institutos Históricos e Geográficos, que tinham por objetivo apagar o passado “negro” do Brasil, escondendo a escravidão, e construir uma então nova história para o Brasil, eurocêntrica, branca e “moderna”.
Todavia o conceito de hegemonia não pressupõe onipotência, onipresença, nem é totalitário e monolítico. Mas o oposto, pois é envolto pela coadunação de interesses entre classes e fragmentos/grupos e, ao mesmo tempo, convive com seu movimento de negação, ou seja, setores submetidos à exploração se organizam para negá-la e contrapô-la. São os grupos/classes contra-hegemônicos, que além de se oporem ao grupo hegemônico, têm um projeto alternativo de sociedade.
Mas, e o que é contra-hegemonia? É a negação e oposição à hegemonia. Se o capitalismo é hegemônico, a contra-hegemonia é feita por classe ou grupos que se contraponham a este sistema. Então para um grupo ou classe ser contra-hegemônico não basta criticar o hegemônico, pois existe a disputa intra-hegemônica. Quando grupos hegemônicos não estão sendo beneficiados pelo grupo/classe principal/fundamental e tentam assumir a liderança do processo.
Para ser contra-hegemônico tem que ser proveniente da classe antagônica e ter um projeto também contrário. Deve construir a Guerra de Posição, disputa sem conflito bélico, para conquistar a sociedade civil e as demais esferas do bloco histórico, se constituindo enquanto direção contra-hegemônica. Em geral, as atividades da guerra de posição respeitam os limites da institucionalidade burguesa, respeitando suas leis. As ações clandestinas/subversiva ou ilegais, ficam a cargo da Guerra de Subterrâneo, que também devem ser feita pelos contra-hegemônicos.
O grupo ou classe que aspira à contra-hegemonia não admite a atual hegemonia, e em não admiti-la somará seus esforços para pervertê-la e derrubá-la. Por outro lado, as classes hegemônicas, historicamente, não assistiram passivas a estes processos, em geral fizeram uso de seu aparato repressor policial e das forças armadas para a repressão. Se a aspiração é a superação do projeto hegemônico, a ruptura violenta faz-se imprescindível, o que Gramsci vai chamar de Guerra de Movimento, ou a guerra real, confronto civil-militar, gente matando, gente morrendo.
A ruptura violenta faz-se imprescindível, não só porque o grupo contra-hegemônico quer derrubar seu oponente. Mas, porque ao menor sinal de possibilidade de perda de seu poder, o grupo hegemônico parte para a violência de Estado. Declarando guerras civis, estados de emergência, de sítio, e colocando as tropas militares efetivamente nas ruas para combater os subversivos. A experiência da história recente da América Latina deixa muito nítido até que ponto são capazes os grupos hegemônicos, quando apenas ameaçados de perder alguma esfera do bloco histórico, promoveram golpes militares.
2.2 Características Contra-hegemônicas e o Movimento dos Sem Teto de Salvador
Não é por ser proveniente da classe contra-hegemônica, seja ela considerada como fundamental ou subalterna, que os grupos/classe e seus projetos serão, necessariamente, contra-hegemônicos. Isso não é nenhuma novidade, pois o próprio Karl Marx (1998) no Manifesto já alertava sobre os movimentos operários que, se não ultrapassassem uma mera disputa por salários e melhores condições de trabalho, não seriam revolucionários.
Por outro lado, um movimento social organizado por uma classe considerada subalterna, não é, necessariamente, a luta por seus próprios interesses. Nem uma luta que não tem por perspectiva uma ruptura com o projeto hegemônico da sociedade vigente. A supervalorização de determinados segmentos dos explorados como os fundamentais para a luta contra-hegemônica ou revolucionária em detrimento de outros, vem se constituindo enquanto um erro histórico.
Assim, os Sem Teto não podem ser desprestigiados da análise de movimentos contra-hegemônicos ao modelo capitalista. A seguir tentaremos destacar características que podem sugerir a interpretação do Movimento dos Sem Teto de Salvador – MSTS enquanto uma manifestação contra-hegemônica dentro da sociedade civil soteropolitana.
De acordo com nossa interpretação, para verificar se um movimento social é ou não contra-hegemônico, dentro do que já foi exposto, além da origem, ele deverá ter um projeto e um conjunto de ações alternativas à hegemonia atual, a capitalista.
Para a primeira característica, o movimento social tem que apresentar, conforme nossa proposta: a) Criticar publicamente a hegemonia e apresentar alternativa; b) Em documentos sobre princípios norteadores, missão e propósitos deve criticar e apresentar hegemonia alternativa; c) Defender constante para seus integrantes da contra-hegemonia; e, d) Tem que fazer um resgate cultural e histórico (tradição seletiva) de valores alternativos.
Sob essa orientação esta pesquisa passou a investigar os documentos e depoimentos (em entrevistas, jornais e vídeo-documentário) do Movimento dos Sem Teto de Salvador. Sabe-se que a defesa não é de um Tipo Ideal de movimento social contra-hegemônico, até porque a dialética de sua própria construção é imbuída de complexidades. Porém, mesmo assim, podem-se destacar os trechos que se seguem abaixo.
No tocante a declarações públicas que critiquem a hegemonia e apresentem uma alternativa ao modelo:
A estratégia central do MSTS é a construção das Comunidades do Bem Viver. Comunidades que mesmo dentro dos limites do capitalismo construam uma contra-hegemonia no sentido de valores e ações que apontem para uma ruptura e construção de um projeto socialista. Então o objetivo é o resgate histórico-cultural de iniciativas socialistas e de construção de comunidades que se contraponham ao sistema capitalista.
PERGUNTA: A luta pela moradia é a única bandeira do MSTS?
Não. Como já foi dito temos por perspectiva a construção de Comunidades do Bem Viver, que se contraponham ao projeto capitalista e construam valores e ações socialistas. Porém compreendemos que a luta pela moradia é o resultado de mais de quinhentos anos de história de déficit habitacional. (Pedro Cardoso em Entrevista)
Além da luta pela moradia e justiça social, o MSTS tem como bandeira histórica a construção de um novo modelo de sociedade na qual haja uma inversão de prioridades (...)
O desejo de construir uma sociedade menos hipócrita, justa e que distribua suas riquezas econômicas, intelectuais, culturais etc, entre todos. (Ildemário Proença em Entrevista, 2007)
Eu prego o socialismo comunista, com distribuição de renda, coletivismo e diversidade (...)
Nossa luta é ideológica. Temos que romper o paradigma capitalista. Que é podre e nojento. Não temos futuro se continuar do jeito que ta aí. (TAI – Vivaldo Santos Neto – em Entrevista, 2007)
Referente a apresentação de críticas e alternativas ao projeto hegemônico em documentos sobre princípios norteadores, missão e propósitos:
Somos sem-teto, mas não apenas, pois a realidade da escravidão pariu a realidade da exclusão, negando-nos trabalho, saúde, segurança pública, educação, espaços de arte e lazer, enfim, condições elementares de vida. Estas questões são, portanto, reivindicações legítimas do MSTB. Referenciando-nos na luta pela conquista de uma sociedade que seja capaz de efetivar de maneira profunda as liberdades política, econômica, social, cultural e religiosa; buscamos não apenas um “teto” particular, mas sim a constituição de comunidades de bem viver. Empunhando a bandeira da Reforma Urbana, ao fundo afirmamos a força de relações sociais baseadas em idéias de liberdade e não da negação dos direitos de milhões. (Documento Quem Somos, do MSTS)
O MSTB é um movimento pela cidadania que parte da comprovação de que para os setores populares esta não existe em nosso país, e procura construir alternativas nesta perspectiva, e compreende que a garantia dos Direitos Humanos, Justiça Social, Solidariedade, Qualidade de Vida e Participação Popular só serão alcançados com a Igualdade Econômica, Política e Social.
O MSTB solidariza-se na LUTA CONTRA TODA FORMA DE OPRESSÃO E EXPLORAÇÃO existente e presta solidariedade aos trabalhadores de todo mundo. (Regimento Interno do MSTS ver anexo)
Sobre a reconstrução histórico e cultural a partir da utilização da tradição seletiva de valores e experiências contra-hegemônicas e a necessidade de fazer a defesa para seus integrantes:
Tendo como principal embrião o Movimento dos Sem Teto de Salvador, fundado em julho de 2003, o MSTB (Movimento dos Sem Teto da Bahia) traz uma composição social que herda histórias de alegrias, dores e ações de coragem dos segmentos populares brasileiros e baianos desde as primeiras invasões portuguesas há mais de 500 anos. A existência, no MSTB, de brancos pobres e de descendentes de homens e mulheres “batizados” a ferro e fogo como “indígenas” se entrelaça com cores, traços e gestos de uma fortíssima presença de negras e negros, formando um conjunto simbólico que desde o período colonial tentou realizar sonhos de justiça e igualdade social. (...)
A falta de moradia digna para a maioria dos baianos na atualidade é apenas um dos problemas que nasceram desta história de opressão e luta. Somos nós estes oprimidos, que entre outros movimentos dos excluídos, através do MSTB, agora pedimos a voz.” (Documento Quem Somos, do MSTS)
“Um movimento tem que ter uma inspiração. Não basta somente organizar pelo teto. Entendemos que temos que fazer um contraponto à sociedade capitalista. A Comunidade do Bem Viver pode fazer isso, mesmo dentro dos limites do capitalismo.
Vamos construir em nossas comunidades valores que se contraponham ao capitalismo. Se há discriminação, intolerância e individualismo; nós teremos ecumenismo, cooperativismo e coletivismo.
Nisso nosso exemplo está perto, próximo, na Bahia, em Canudos. Onde em pouco tempo foi construída uma comunidade autônoma e com valores coletivistas. E por isso ela foi destruída pelo governo federal. (Informação Oral de Pedro Cardoso em Seminário de Formação do MSTS na Cidade de Canudos/BA)
Quanto à segunda característica, sobre as práticas, destacamos três aspectos. Primeiro, deve ter ações Contra a Ordem, mas respeitando seus limites (dentro dela). Constitui ações contra-hegemônicas do movimento social que respeitem a legalidade burguesa do estado ampliado hegemônico. Tanto do ponto de vista de ação prática, quanto de questionamentos de contradições da própria legislação.
Segundo, ações Contra a Ordem, mas Fora da Ordem. Ou seja, que conspirem e pratiquem atividades fora da legalidade hegemônica, logo ilegais, subversivas (realizando assim a Guerra Subterrânea que falamos anteriormente). Em terceiro lugar, valorizar os espaços de decisão horizontal, dividindo tarefas e animando sujeitos.
As ações Contra a Ordem e Dentro dela são as ações de protesto, manifestações pacíficas, reuniões com secretarias governamentais. Porém, o que não implicam, necessariamente, em uma postura não crítica, veja que o direito à moradia está previsto na carta constituinte brasileira e não é cumprido.
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...)
Salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (...) (CONSTITUIÇÃO FEDERAL)
Já a democratização dos espaços de decisão tanto pôde ser observado na estrutura de funcionamento formal, regida pelo Regimento Interno. Que formaliza e cria os espaços, colocando-os hierarquicamente de forma superior, como as brigadas, assembléias locais e o congresso estadual, em detrimento das coordenações locais, municipais e estaduais. Além disso, a pesquisa constatou as constantes descentralizações das decisões e divisões coletivas de tarefas. Sem deixar de lado a própria perspectiva de investimento do movimento nesses espaços mais amplos, com rotatividade e formação de novas lideranças, animando sujeitos, como se percebe abaixo.
ART. 1
São instâncias de deliberação:
I. Brigadas;
II. Coordenação Local;
III. Assembléia Local;
IV. Coordenação Municipal;
V. Coordenação Estadual; e
VI. Congresso Estadual.
(Regimento Interno do MSTS ver anexo)
As Brigadas são experiências oriundas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, porém que ocorrem com as famílias dos integrantes. Na experiência com os Sem Teto, a relação é direta com atuais lideranças, lideranças em potencial e lideranças latentes (que ainda não se despertaram). Além do curso de formação de oito horas, onde são discutidas questões organizativas do movimento além de debates políticos, as brigadas são responsáveis por criar uma rotatividade na coordenação das ocupações. Organizadas em grupo, são definidas coordenações rotativas que passam um determinado período em cada ocupação. O objetivo é despertar e formar novas lideranças. (Pedro Cardoso em entrevista ao autor)
No que tange às ações Contra a Ordem e Fora dela, destacaremos algumas que são previstas como ilegais, até mesmo pela Constituição Brasileira. Do levantamento realizado no Fórum Ruy Barbosa nos processos e notícias de processos contra o Movimento dos Sem Teto de Salvador e seus coordenadores, a maioria foi de ações de Reintegração de Posse. Apesar de termos encontrado Interditos Proibitórios e um processo contra ligações clandestinas de energia elétrica.
O fato de não haver uma criminalização do movimento pelo Estado, não significa que haja uma flexibilização na legislação em permitir ações como Invasão de Propriedade Privada, Arrombamento, Depredação, Cárcere Privado, Ligações Clandestinas de energia elétrica e água, Transgressão ao direito de ir e vir com o bloqueio de ruas e Vandalismo.
As ações citadas carregam uma conotação pela interpretação da legislação burguesa, o que não implica dizer que a moral discutida e adotada aqui seja a hegemônica, pelo contrário. Essas ações, muitas das vezes, são a base do funcionamento do movimento, logo não tem importância secundária nem são irrelevantes. Como fazer funcionar uma Ocupação, sem “invadir” a propriedade privada, sem desobstruir sua entrada, e sem manter condições mínimas de vida para o ser humano com “gatos” de água e luz? Não é possível, tanto que são feitos. E não estão errados sob a perspectiva moral da contra-hegemonia, pelo contrário, estes atos são a requisição do direito à vida pelos excluídos e explorados.
Considerações Finais
O que tentamos fazer neste trabalho, partindo de conceitos marxistas sobre a sociedade e seu funcionamento (nas disputas pelo controle da hegemonia do bloco histórico, ou seja, a luta de classes), foi problematizar um fenômeno social contemporâneo da sociedade soteropolitana. E que, também, é compartilhado por diversas outras capitais e grandes cidades do Estado Brasileiro, a formação de movimentos dos sem teto.
Em nossa avaliação, o movimento específico analisado, Movimento dos Sem Teto de Salvador, pode ser caracterizado enquanto um movimento contra-hegemônico à hegemonia capitalista. O que não implica afirmar ser um movimento de tipo ideal e que contemple todas as características plenamente de um movimento alternativo ao capitalismo. Nem tão pouco que seja perfeito ou que tenha atingido uma plenitude organizativa e de formação de seus integrantes.
Entendendo, mesmo assim, as possíveis limitações de um movimento de massas, temos que levar em consideração o papel que o MSTS tem desenvolvido na inspiração/eclosão tanto de outros movimentos sociais, como na formação/animação de novos sujeitos críticos/propositivos à hegemonia burguesa e a sua exploração, assim como na organização e embate efetivo à elite hegemônica.
Construindo assim novos capítulos para a história da luta de classes na cidade do Salvador, criando conflitos e quebrando consensos fictícios criados e propagados pelas classes hegemônicas. Rompendo amarras do tradicionalismo das esquerdas e organizando a população para a experimentação de valores e costumes alternativos e para o embate efetivo ao capitalismo.
Referências:
Bibliografia:
ALMEIDA, Jorge. In Crítica Social.Número 3.Rio de Janeiro, 2003.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 05 de outubro de 1988 in Manuais de Legislação. São Paulo: Atlas, 1997
WILIANS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.)
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, Patriarcado, Violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
PRIORE, Mary Del (org.). História das Mulheres no Brasil.7. São Paulo: Contexto, 2004.
Documentos:
Regimento Interno do Movimento dos Sem Teto de Salvador – MSTS, aprovado pelo I Congresso Estadual.
Documento-texto Quem Somos, aprovado pelo I Congresso do Movimento dos Sem Teto da Bahia.
Jornais A Tarde, Correio da Bahia e Tribuna da Bahia de agosto de 2003 a janeiro de 2007.
Processos e Notícias de Processos envolvendo o Movimento dos Sem Teto de Salvador pesquisados no Fórum Ruy Barbosa.
Entrevistas e Depoimentos:
Entrevistas e Depoimentos com Pedro Cardoso, Ildemário Proença, Tai – Vivaldo e Naélcio.
Depoimentos no Vídeo-docuemntário MSTS, de Carlos Pronzato.
[1] Historiador, Especialista em Docência do Ensino Superior, Mestre em Desenvolvimento Urbano e Regional, atualmente é professor da Fundação Visconde de Cairu. raphaelcloux2@yahoo.com.br, raphaelcloux@click21.com.br.
[2] No sentido de ganhar poder próprio, elevação da auto-estima e transformação em sujeito ativo ou animação social.